Qi do Fígado: A Espontaneidade no Existir, Parte I
21-05-2016 16:58
0. Prologo
Inicialmente, neste texto pretendia falar exclusivamente do Qi do Fígado na visão da Medicina Chinesa. No entanto, ao contrário da Medicina Alopática onde o Fígado tem fronteiras bem definidas e podemos falar apenas dele para o compreender, o mesmo não acontece na Medicina Chinesa. Por este motivo decidi explicar o modo como este órgão se relaciona com todo o corpo.
Espero que o tamanho do texto não seja um impedimento à sua leitura e que este permita ao leitor uma nova luz sobre o que é a Medicina Chinesa, qual a sua riqueza para com o conhecimento humano, e que contributos este conhecimento pode trazer ao cultivo da saúde na vida individual e colectiva.
1. O Qi do Fígado
Para falarmos de Qi do Fígado é necessário entender que o conceito de órgão é diferente no ocidente e na Medicina Chinesa. No ocidente o órgão é uma estrutura anatómica especifica com uma fisiologia própria, na Medicina Chinesa um órgão é uma loca onde se encontra um Qi1 de funções e características especificas com um comportamento próprio. Assim, Fígado no ocidente e Fígado na Medicina Chinesa têm referências diferentes e não podem ser comparados ou analisados debaixo dos mesmos princípios de raciocínio.
Dito isto procuraremos não falar mais de Fígado mas sim de Qi do Fígado, ou seja, das suas funções e manifestações.
Assim, o Qi do Fígado assume e manifesta-se em três funções principais:
1. QiJi, ou seja manter a livre circulação de Qi no corpo,
2. Armazenar e conservar o Xue,
3. Governar e controlar os tendões e as aponevroses,
2.1- A circulação energética e o QiJi
Em medicina chinesa contemplamos o corpo de um ponto de vista funcional, sensorial e “energético”/dinâmico. Assim, desde há milénios que se estuda a forma como o corpo sente e como dos diferentes padrões sensoriais se desenvolvem diferentes quadros funcionais orgânicos manifestos na saúde ou na doença.
Possivelmente, foi deste modo que os antigos mapearam os meridianos de acupunctura. Canais sob os quais se sente o fluxo sensorial de Qi que se manifesta funcionalmente nas mais variadas funções humanas. É provável que tenha sido desta maneira que se descobriram as funções dos pontos de acupunctura pois ao estimular estes pontos verificou-se que toda a rede “energética” e sensorial era alterada, desencadeando ora uma melhoria ora um agravamento nos vários quadros estudados.
Com o continuar do estudo da fisiologia “energética” comprovou-se que esta é complexa e que no interior do corpo existem locas/ receptáculos de Qi de natureza específica que se sentem de uma forma particular e se comportam com uma identidade própria. Estes receptáculos “energéticos” conectam-se entre si através dos meridianos de acupunctura criando uma rede cibernética onde o corpo trabalha em uníssimo. O Qi circula desde modo nutrindo e activando as distintas partes do todo, proporcionando sensibilidade, funcionalidade, suporte, defesa e adaptabilidade.
O QiJi é a função de manter o livre fluxo do Qi ao longo do corpo permitindo a manifestação do Qi de cada órgão. Entendemos então que o QiJi não impulsiona o Qi mas mantem os canais relaxados e abertos permitindo o livre fluxo. Esta função diz-se a manifestação correta do Qi do órgão Fígado que desde modo permite a circulação do Qi por todo o corpo, que por sua vez irá proporcionar a já referida sensibilidade, funcionalidade, suporte, defesa e adaptabilidade.
2.2 Armazenar e conservar o Xue
O Xue traduz-se por sangue. Contudo e como para todas as traduções literais da Medicina Chinesa, o conceito de Xue difere do nosso entendimento de sangue. Por este motivo falaremos apenas de Xue.
As características do Xue são:
1. Circula por todo o corpo, órgãos e tecidos,
2. Tem função de nutrir e hidratar o corpo,
3. É interdependente do Qi,
4. É a residência do Shen2 (traduzido erroneamente como Mente).
Estas características do Xue são muito importantes pois informam-nos de três aspectos fundamentais das funções do Qi do Fígado:
1. O Qi do Fígado ao governar o Xue está em contacto directo com todos os tecidos do corpo, pois o Xue nutre todo o corpo.
2. Sendo o Xue a residência do Shen temos uma relação estreita entre o Qi do Fígado e os processos mentais.
3. A qualidade e composição do sangue dependem do bom funcionamento do Qi do Fígado (algo que a Medicina Alopática e a Ciência corroboram).
A função de armazenar o Xue, regulando o Shen, reporta-nos para a relação entre o Qi do Fígado, o sono e os sonhos. Em Medicina Chinesa, diz-se que o Fígado recolhe o Xue durante a noite, para o conservar e manter o seu equilíbrio, revitalizando-o. Esta função refere-se à capacidade de dormir bem, promovendo a saúde mental e emocional. Por este motivo uma das manifestações das desordens do Qi do Fígado são os sonhos agitados.
2.3- Governar e controlar os Tendões e as Aponevroses
O Qi do Fígado governa os tendões e as aponevroses, controlando a função contráctil dos músculos. Deste modo, o estado de tensão ou lassidão dos tendões e das aponevroses e o estado de rigidez ou flexibilidade do corpo depende do Qi do Fígado (permitindo, ou não, o livre fluxo de Qi).
Esta relação torna-se facilmente visível no decorrer de um ataque de raiva, onde observar um individuo a aumentar o seu volume através da contracção muscular ou na formação de contracturas musculares quando um individuo está sujeito a sucessivas frustrações e más posturas.
Esta função última é muito importante pois revela-nos que a Medicina Chinesa não é esotérica e que o Qi não é etérico. Pelo contrário esta Medicina foca-se no dinamismo e o Qi refere-se ao funcionalismo.
Continua: Parte II
https://afonso-bandeira-guimaraes.webnode.pt/news/qi-do-figado-a-espontaneidade-de-existir-parte-ii/
1- https://afonso-bandeira-guimaraes.webnode.pt/news/os-conceitos-de-qi/
2- https://afonso-bandeira-guimaraes.webnode.pt/news/alegoria-do-shen/