Crítica ao ensino da Medicina Chinesa
22-09-2015 19:55
O ensino da Medicina Chinesa, enquanto área não legislada e entregue a entidades independentes, está intrinsecamente suscetível de falhas a vários níveis. Contudo não é meu objectivo aqui criticar as diferentes instituições de ensino ou apontar os defeitos particulares destas. Com este texto pretendo apontar os erros de fundo da forma como a Medicina Chinesa é encarada, analisada e subsequentemente ensinada.
O primeiro erro que quero salientar prende-se à própria origem da Medicina Chinesa. Esta surge numa época pré-científica e está sujeita ao ponto de vista em que foi gerada. Ou seja, todas as observações e discrições da natureza, da saúde e da doença que estão na origem das teorias da Medicina Chinesa e do Taoísmo foram elaboradas de uma perspectiva cultural específica que ao longo de milénios foi lentamente evoluindo. Assim, para a compreensão das teorias da Medicina Chinesa é imperativo compreender o contexto cultural em que foram geradas. Pensar que podemos aprender teorias milenares sem compreender o contexto cultural da sua génese, a forma como as teorias foram desenvolvidas, as suas evoluções a par dos acontecimentos sociais das distintas épocas é dar aso a erros profundos de compreensão. Isto é, ao nos ser apresentada a teoria da Medicina Chinesa enquanto um compêndio final sobre as mecânicas energéticas do Yin e do Yang, dos 5 movimentos, do I-Ching, do Ba-Gua, dos 6 níveis energéticos, das quatro camadas, e do sistema Zhang-fu, vemo-nos inevitavelmente sujeitos a uma análise do nosso ponto de vista cultural com todas as falácias que daí surgem, sendo a perda de objectividade científica a mais grave de todas estas.
O segundo erro no ensino da Medicina Chinesa surge no tratamento que as teorias levaram ao chegar ao ocidente. Quando as teorias da Medicina Chinesa chegaram ao ocidente, estas foram analisadas pelas pessoas que nelas tinham interesse e por isso foram analisadas de uma perspectiva ocidental vitalista, vigente no milénio passado, que nada tinha a ver com a perspectiva oriental que lhes deram origem. Inevitavelmente a análise foi tendenciosa com vista a apoiar as ideias vitalistas da existência de uma energia vital que alimenta e rege o corpo e a mente. Deste modo surge um erro semelhante ao primeiro: ao não ser analisado o contexto social em que estes tratamentos teóricos ocorreram não nos é possível compreender na integra a natureza das teorias e novamente surge o problema do desfasamento da nossa perspectiva cultural actual e a de alguns anos atrás.
O terceiro erro surge da própria natureza evolutiva da Medicina Chinesa. As teorias da Medicina Chinesa estão feitas “umas em cima das outras”, isto é: ao contrário das teóricas científicas em que as teorias mais antigas são substituídas por teorias mais recentes e mais completas, as teorias da medicina chinesa não são substituídas mas vão ganhando novos significados. Este facto em si não é um erro mas antes uma característica do desenvolvimento da Medicina Chinesa. O erro é o não ensino desta natureza intrínseca da evolução da Medicina Chinesa. Só da compreensão dos contextos evolucionais da Medicina Chinesa é que se torna possível verdadeiramente analisa-la objectivamente, compreende-la debaixo de uma nova luz e potencialmente melhora-la e adapta-la a novas evidências.
O quarto erro está no não ensino da ciência por detrás da eficácia terapêutica da Medicina Chinesa. A sua eficácia está comprovada quer por estudos actuais, quer pelos milhares de escritos descritivos de Médicos ao longo de milhares de anos. Contudo, a explicação dos efeitos terapêuticos das distintas terapias da medicina chinesa, carecem de uma abordagem científica do "porquê" dos seus efeitos. Ao invés de justificar a utilização de um ponto (de acupuntura) pela sua natureza energética é necessário intender o “como” por detrás da sua acção. Só desse modo será possível levar a Medicina Chinesa para o próximo nível e potenciar os seus efeitos. Assim, no ensino da Medicina Chinesa não só deveria ser ensinado o raciocínio energético intrínseco às teorias da Medicina Chinesa mas também todas as evidências científicas que justificam as diferentes acções das terapêuticas assim como as falhas que existem neste entendimento.
O quinto e último erro que tenho a assinalar é semelhante ao anterior. Prende-se ao não ensino das evidências científicas que apoiam a visão holística da Medicina Chinesa. Quem estuda Medicina Chinesa rapidamente aprende a ver o corpo como um todo na sua dinâmica interna e exterior. Contudo, esta visão prende-se exclusivamente a uma análise energética.
A visão da ciência sobre o Homem e do Universo aproxima-se cada vez mais da visão holística da Medicina Chinesa e por este motivo torna-se fundamental que estes entendimentos convergentes façam parte intrínseca do conhecimento de todos os profissionais desta área. É imperativo aprender o raciocínio científico para poder falar com colegas de outras áreas e levar a cabo uma fundamentação real das dinâmicas por detrás das teorias energéticas.
Com tudo isto não pretendo por em causa as teorias da Medicina Chinesa, apenas salientar que se a teoria energética e a científica se sobrepõem no corpo humano então é lógico concluir que estas se relacionam. E ainda, se o método científico é a melhor ferramenta que dispomos para a investigação, então é necessário saber domina-la e aplica-la à milenar Medicina Chinesa.
Espero que este texto sirva de alerta para quem agora inicia os seus estudos e como um “por em perspectiva “ para os que já trabalham com a Medicina Chinesa. Para as instituições de ensino desejo que este texto seja um motivo de reflexão e melhoria.
Afonso Guimarães